Eu nunca pensei em qual característica predominante me faz ser negro. Então, quando hoje fui interpelado por um avaliador da banca de heteroidentificação de um concurso que fiz, a respeito de como me sinto em relação a ser negro, tive que pensar. Porque, na verdade, quem é negro, no caso preto (porque negro é quem nasce na África, e essa designação "negro" vem de uma afirmação baseada na teoria da eugenia, assim como todas as outras raças também foram criadas por pseudocientistas sem moral ou ética).
No século XIX, a eugenia emergiu como uma pseudociência que propunha a melhoria genética da humanidade por meio do controle reprodutivo, baseando-se em noções equivocadas de superioridade racial. Um dos principais defensores dessa teoria foi Francis Galton (1822–1911), primo de Charles Darwin e considerado o "pai da eugenia". Galton argumentava que características físicas e intelectuais eram hereditárias e que algumas raças eram "superiores" a outras.
Ao longo do século XX, cientistas e filósofos começaram a criticar duramente essas pseudociências, destacando sua falta de rigor metodológico e suas implicações éticas prejudiciais. A Segunda Guerra Mundial e os horrores do nazismo, que utilizaram ideias eugenistas para justificar genocídios, marcaram o declínio formal da eugenia como prática aceita. Contudo, seus resquícios ainda persistem em discursos racistas e preconceituosos.
O uso do termo "negro" como designação racial tem raízes históricas profundamente ligadas às pseudociências do século XIX, como a eugenia, que tentaram legitimar hierarquias raciais sem base científica. Cientistas como Francis Galton e Cesare Lombroso, bem como figuras brasileiras como Raimundo Nina Rodrigues, contribuíram para a disseminação dessas ideias em contextos locais e globais. Hoje, é fundamental reconhecer essas origens problemáticas e promover uma abordagem mais ética e inclusiva na discussão sobre raça e identidade.
Apesar de o IBGE já definir a população parda e preta do Brasil como negra, acho meio vaga essa definição. Gostei muito da maneira como um político, que conheci há alguns anos atrás, candidato a prefeito de Mesquita, no estado do Rio de Janeiro, durante uma conversa, chamou a população parda e preta do Brasil de "negro brasileiro". Acho que soa muito melhor que simplesmente "negro", porque não existem pessoas de pele escura só no Brasil nem na África; existem pessoas agraciadas pela presença exacerbada de melanina no maior órgão do corpo humano em todo o mundo, sejam elas retintas ou não. Por isso, definir uma pessoa de negra é uma afirmação muito genérica, além de não refletir muitas vezes como a pessoa realmente se sente, e também não reflete a realidade fenotípica do cidadão inferida numa cultura ou no âmbito social.
A definição de etnia é muito mais abrangente, aceitável e até muito mais científica e embasada que a definição de raça. Por isso, hoje, quem estuda a questão da relação entre as pessoas e os povos levando em consideração vários valores, não só a sua cor de pele, tais como: cidadania, cultura, classe social, origem, hereditariedade etc., indica que é muito mais salutar definir uma pessoa pela sua etnia e como ela se autodefine, que por sua raça.
Mas eu entendo essa pergunta. Eu, um homem fenotipicamente de pele escura ou um negro retinto, não tenho dúvidas de que sou realmente negro, não só nos critérios do IBGE. Mas algumas pessoas do teste, no máximo, seriam pardas, o que para o IBGE também é negro. Mas mesmo nessa entrevista de poucas pessoas ao meu redor, eu podia reparar em pessoas que, mesmo sendo negras, porém de pele bem mais clara, ou seja, um pardo bem mais claro, aquelas pessoas que, quando alisam o cabelo, botam uma boa roupa, passam muito bem por uma pessoa branca. Essas pessoas não são seguidas em lojas, são bem atendidas em lugares de rico, entram em restaurantes tranquilamente ou moram em condomínios de luxo sem serem humilhadas por outro morador e jamais vão levar um enquadro na rua da polícia.
Então, essa pergunta é para essas pessoas, e talvez o que elas falem ajude o examinador a defini-las como negras. Porque mesmo você tendo uma pele mais clarinha, sendo um pardo bem clarinho, feições finas, tendo baixa estatura, mas morar na favela, você é preto. Mas se você tiver dinheiro, pertencer à classe média ou ficar rico, será reconhecido e tratado como branco, um branco sujo, mas um branco.
Uma outra coisa que percebo também com relação a essa confusão que acontece hoje é sobre o que é ser racista ou não. As pessoas acham que gostar de pagode, de samba, de carnaval, de transar com um homem ou uma mulher negra, os torna menos racistas. Alguns autores e estudiosos modernos falam sobre a sexualização do homem negro, onde ele é sempre identificado pelo tamanho do seu pênis, como sendo a coisa mais importante na sua constituição física e até mesmo da sua personalidade, o que já acontecia há muito tempo com a bunda das mulheres negras. Isso vem desde a escravidão; homens e mulheres negras sempre foram sexualizados e considerados escravos sexuais ou objetos de diversão para homens e mulheres brancos satisfazerem sua libido e abrandarem suas inseguranças e melhorarem sua autoestima. É muito mais fácil gostar de ver pretos e mulatas na avenida, mas é muito difícil receber ordens de um homem negro que é mais inteligente e mais capaz no exercício de uma função de superioridade.
Por isso, o sistema fascista impede que homens e mulheres negras cheguem a posições de poder, e muitas vezes a própria pessoa branca progressista não percebe o quanto ela alimenta esse sistema racista que naturaliza questões como achar uma mulher preta bonita na avenida num desfile de carnaval, e feia vestida de terninho sendo a gerente do banco, ou desfilando alta costura numa passarela da moda. O mesmo acontece quando ao ver um homem preto jogando futebol e vê-lo sendo técnico do time. Ou ver um homem preto assentando um tijolo com perfeição e ele assinando o projeto arquitetônico de um edifício. Ou ainda ver um homem como auxiliar parlamentar ou como um deputado, um prefeito, um governador, ou até presidente da república. E aqueles que conseguem furar essa bolha e serem eleitos são considerados a regra, mas na verdade são a exceção, e raramente são eleitos para os cargos de prefeitos ou governadores, no poder legislativo, eles não fazem parte de um coletivo, então eles não mandam, por isso são eleitos, o que não pode ser dito de cargos do executivo.
No inconsciente coletivo da população brasileira, homens e mulheres negras não podem comandar, não sabem comandar, não têm capacidade intelectual para comandar. Isso é uma retórica repetida inconscientemente pela população. E até mesmo pela população negra que se limita e se autossabota, pois não se acha com direito de ter uma vida confortável ou assumir cargos de poder.
Sabemos que homens e mulheres, independentemente da sua cor, têm a mesma capacidade intelectual, e que, percentualmente, quase 60% da população brasileira é preta ou parda. O que significa que se essas pessoas assumissem cargos de poder ou cargos que precisam de alto desempenho cognitivo para ações tecnológicas, o Brasil daria um passo gigantesco em relação aos outros países do mundo. O racismo é um sistema que impede que a maioria da população brasileira tenha acesso a cargos de poder, a empregos de tecnologia, a cargos em que precisa ter um grande conhecimento tecnológico ou a formação acadêmica de ponta, como mestrado e doutorado. Isso faz com que o Brasil esteja atrasado em vários anos em relação a qualquer país onde isso não aconteça.
Voltando ao exame de heteroidentificação, na minha definição de por quê eu sou, e porque me considero negro, eu só consegui responder o óbvio: sou negro porque sempre me senti assim, sou negro por causa da minha família que me fez ter orgulho de ser um homem negro, por causa da minha origem suburbana que me fez ver pessoas honradas, fortes e inteligentes parecidas comigo, da minha classe social que me fez lutar muito mais do que os meus amigos de pele mais clara, e sou negro porque apesar de tudo que passei, a minha resiliência me fez chegar até aqui.
Valdemir Costa
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"A Bolha - Senzala Digital" é fruto da vasta experiência de Valdemir Costa como ativista cultural e estudioso das questões raciais. O autor traz uma abordagem interdisciplinar, combinando conhecimentos acadêmicos, experiências pessoais e práticas de empoderamento, para apresentar um olhar crítico sobre o letramento racial e a conscientização das questões raciais na atualidade.